Instando Absolvição

Falemos da experiência ou da falta de tato e comiseração nas pequenas ambiências, moradias adiadas por um sentido obliterado dos termos, palavras vãs, cascatas, supremos gostos, validades, fulgores, risos de deuses bem dispostos, chuva, na maioria das vezes, apodrecendo os sentidos, mastigação do riso por cada um dos intervalos.

O Sentimento de Culpa, José Maria de Aguiar Carreiro

Singularity - Day Two

31 de ago. de 2010

E assim veio o segundo dia, após passar um bom tempo intacto na poltrona do escritório do meu apartamento no primeiro, o pensamento que sempre se encadeava ao mesmo motivo me tentava levar à loucura. A monotonia se preenchia de novo em minha singularidade e esta ali. Ela estava se reerguendo. O maço de cigarros no braço da poltrona me acompanhava. Talvez como um combustível, já que eu não fazia questão de abastecer a geladeira.
Levei o cigarro que se encontrava no meio dos meus dois dedos à boca em um movimento que não mais parecia ser de um eloqüente. Tudo porque quando eu comecei, eu soube que aquilo ia me matar e eu não ligava, o cigarro me ajudava a refletir, refletir sobre ela.
Aquela sensação prazerosa se assemelhava a ela. Ela tomava conta de mim por mais que eu odiasse admitir. Naquele momento ela pertencia a mim, eu fixei isso em minha mente naquele segundo dia. Pois com minha singularidade reconstituída eu sentia a necessidade de ir até lá para afetá-la novamente. Era um vício, talvez o único que eu me arrependia de ter, mas sem dúvidas era o que me provocava mais prazer.
Estava particularmente frio naquele dia, uma virada extrema de temperatura, eu gostava disso. Dava-me uma sensação de conforto interno, pois o frio sempre se resumia a mim. Hiver, meu sobrenome, significava Inverno em francês. O sangue frio corria em minhas veias.
Mas teve algo que me incomodou enquanto eu andava em rumo à cafeteria, pela primeira vez, a sensação de frio não me parecia confortável. E a partir do momento em que o frio já não me é confortável eu perco qualquer certeza que eu posso ter sobre minha definição. Eu me sentia com frio, desprotegido.
Era isso que martelava em minha cabeça enquanto eu virava para o próximo quarteirão, as ruas não possuíam muitas pessoas, nunca possuíram, mas no frio ninguém aparece. No frio, os singulares não são os que ficam em casa e sim os que saem.
E com essa certeza, a próxima cena seguiu tão coerente. Enquanto andava observei um dos vários becos das ruas e eu tive algo que depois descobri não ser alucinação. Eu vi aquele corpo frágil e pálido que sempre passava sinal de insegurança. Ela não estava sozinha, outro corpo estava ali, muito maior que o seu. Um homem alto e bem mais velho que ela, deveria ter uns quarenta e poucos anos. Cabelos ruivos, cor de fogo.
Ele gritava com ela em alto tom, mas de modo com que a conversa só ficasse entre os dois. Eu estava a uns dez metros de onde tudo acontecia. Era o beco perto do estacionamento de uma conveniência. Ele a pressionava contra um dos carros apontando o dedo sujo em sua cara que estava rosada. Ela segurava o choro, eu conhecia aquela expressão porque tantas vezes eu fui a causa dela. Aquelas duas amêndoas inchadas, o lábio inferior muito mais vermelho do que o normal mordido pelos dentes.
Senti nojo. Não dela. Dele. Por fazer isso com a minha menina. Eu era o único que a deixava daquele jeito e ponto final.
Ele se afastou enquanto ela fechou os punhos e caiu sentada no chão, fingi que era apenas mais um ali e ele passou por mim rapidamente exalando um cheiro de álcool no ar. Voltei meus olhos a ela. Eu poderia ir lá. Eu precisava ir lá. Porque eu tinha que cometer aquele novamente, pois aquela maldita idéia não havia saído da minha cabeça e eu não me importaria de me arrepender quando já estiver lá, mas eu não a deixaria.
Então posso dizer que sou e não sou culpado de sua miséria. Eu a salvei, daquela vez, pois os segundos em que meu olhar se submeteu a um abraço no olhar dela tudo se tornou obsessão. E talvez toda a obsessão se tornou correspondia. E tudo isso se tornou plural. E o singular não era mais ela.
E passamos o dia ali, me sentei ao lado dela sem dizer nada novamente. Sei que ela notou minha presença e fez questão de me agradecer com um leve sorriso por trás de algumas lágrimas. E eu a toquei. Percorri meus dedos grossos e secos pela pele pura e macia de sua inocência.
Percorri toda a linha de sua bochecha, seu queixo e seu pescoço. Voltando e iniciando até que na quinta vez afaguei seus cabelos macios enquanto limpava suas lágrimas com minha outra mão.
Eu sentia uma leve hesitação nela, mas não era nada que ela pudesse emitir com os lábios. E o mesmo percorria em mim. Era calor. E mesmo que eu odiasse calor, naquele segundo dia me acostumei a ele porque no final uma palavra bastou para meu fluxo de prazer:
“Obrigado, Hiver.”

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So nevermind the darkness, we still can find a way... 'Cause nothing lasts forever... Even cold November Rain.